O ‘tiroteio verbal’ que o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal,
promove para defender suas posições já viraram rotina na cena
brasileira. Se algum tema nacional passa pelo debate jurídico e Gilmar
tem ingerência, ele desfere seu linguajar corrosivo para atingir antagonistas.
Mas se as palavras ácidas de Gilmar sempre foram a parte mais notória
do magistrado, agora elas passaram a segundo plano. Após protagonizar
nos últimos dias uma queda de braço com o juiz de primeira instância do
Rio Marcelo Bretas, o país começa a questionar decisões do ministro que
se confundem em conexões incômodas com políticos e empresários
investigados no esquema de corrupção desvendado inicialmente na
Petrobras. O assunto foi parar na mesa da presidente do Supremo, Carmen
Lúcia, que precisará decidir nos próximos dias se a postura de Gilmar
deve ser debatida no plenário da Corte.
Foi o trabalho de Bretas,
já comparado ao juiz Sergio Moro, que colocou a corte nessa “toga
justa”, expressão usada pelo jornalista da Folha, Josias de Souza. O
juiz carioca é responsável pelos processos da Lava Jato no Rio de
Janeiro. No início de julho, ele mandou prender preventivamente Jacob Barata Filho, magnata de empresas de ônibus no Rio,
suspeito de pagar propinas a políticos e agentes públicos por vários
anos. Ele deteve, também, outros nomes do setor que integrariam o
esquema.
Acontece que Gilmar foi padrinho do casamento em 2013 de
Beatriz Barata – filha de Jacob Barata Filho — quando ela se casou com
Francisco Feitosa Filho, por sua vez, filho de Francisco Feitosa de
Albuquerque Lima, irmão de Guiomar Mendes. Esta última, vem a ser a
esposa de Gilmar. Para além dessas coincidências familiares, outro
imbróglio. Barata Filho é sócio de uma empresa de transporte onde
Albuquerque Lima, ou seja, o cunhado do ministro do Supremo, tem
participação societária.
Por isso, causou mal-estar quando, no dia
17 de agosto, o ministro acatou pedido de soltura dos advogados de
Barata Filho, alegando que as denúncias atribuídas a ele “embora graves,
esses fatos [as denúncias] são consideravelmente distantes no tempo da
decretação da prisão. Teriam acontecido entre 2010 e 2016”. Determinou,
assim, a prisão familiar do empresário de ônibus, a retenção de seu
passaporte e a proibição de contato com outros investigados na ação.
No
mesmo dia 17, Bretas entrou com novo pedido de prisão preventiva contra
os acusados, mas Gilmar concedeu novamente habeas corpus para os
empresários. O ministro, então, foi fiel a seu estilo irônico para
tratar de assuntos com os quais não concorda. “Isso é atípico e, em
geral, o rabo não abana o cachorro, é o cachorro que abana o rabo”,
disse ele. Na sequência, liberou mais sete detidos pelo juiz carioca
nessa investigação, seguindo a argumentação sustentada para Barata
Filho. Antes, argumentou que não se sentia impedido de julgar o assunto
uma vez que o casamento entre a filha do acusado e o sobrinho de sua
esposa “não durou nem seis meses”.
A desenvoltura de Gilmar para
defender suas posições sempre suscitou reações críticas no mundo
jurídico. Só que desta vez, do Ministério Público, a associações de
juízes e artistas globais decidiram peitar o ministro, que agora encara
um pedido de suspeição no STF para que se afaste do caso devido à
proximidade com os investigados. A Procuradoria Geral da República
entrou com o recurso, após o Ministério Público Federal do Rio ter feito
essa solicitação, solicitando, ainda, que as decisões de Gilmar sobre o
assunto sejam anuladas. .
No
pedido, Rodrigo Janot afirma que "vínculos pessoais que impedem o
magistrado de exercer com a mínima isenção suas funções no processo",
apontando tanto a relação de compadrio do casamento, quanto as ligações
do seu cunhado com Barata Filho, bem como o fato de Guiomar Mendes
trabalhar num escritório de advocacia que defende o empresário rei do
ônibus e outro suspeito do esquema que havia sido detido, mas foi
liberado por um habeas corpus concedido por Gilmar (Lélis Teixeira,
presidente da Federação das Empresas de Transporte do Estado do Rio).
Não é a primeira vez que o procurador geral, Rodrigo Janot, pede
afastamento de Gilmar na análise de alguns recursos ligados à Lava
Jato. Foi assim em maio, ocasião em que o ministro concedeu habeas
corpus ao empresário Eike Batista. O argumento de Janot era também a
proximidade de Gilmar com o acusado, uma vez que o escritório de
advocacia onde trabalha a mulher de Guiomar tem Eike como cliente.
Mas
desta vez, o pedido de suspeição do procurador ganhou apoio maior e até
inédito, unindo manifestantes que andam em trincheiras opostas. Um ato
de apoio a Bretas no Rio na última quinta-feira – e contra Gilmar
–juntou integrantes do Vem pra Rua, que liderou atos de apoio ao
impeachment de Dilma Rousseff (PT), o coletivo Midia Ninja, simpático a
Dilma e ao PT, artistas que defendem a investigação de Michel Temer
(PMDB) e eram contrários à queda da petista, além de juízes federais e
procuradores da República.
Todos cobravam, de uma maneira ou de outra, que Cármen Lúcia
pressionasse Gilmar Mendes a ter uma postura mais adequada a um
magistrado. Ou seja, de não se manifestar publicamente sobre qualquer
assunto que estivesse sob sua responsabilidade de julgamento, de
declarar-se impedido em casos que tenha ligação com as partes e de
evitar que tenha um posicionamento político, ao invés de técnico.
“Cansei de emitir notas contra a postura do ministro Gilmar Mendes.
Precisávamos fazer um ato mais duro”, afirmou ao EL PAÍS o presidente da
Associação de Juízes Federais, Roberto Veloso. Este juiz vê na atitude
de Mendes um movimento que tenta acabar com a operação Lava Jato, que desvendou o maior esquema de corrupção e desvio de recursos públicos do país.
A
principal queixa de Veloso e de seus pares é que, ao comentar a decisão
de soltar um dos suspeitos de corrupção no Rio, o ministro Mendes
criticou as prisões determinadas por Brêtas e disse que estava havendo
uma inversão de valores na decisão desse juiz de primeira instância.
Também não se declarou impedido de julgar este caso por entender que a
lei não o proíbe.
Para o presidente da Ajufe, a ministra Cármen
Lúcia deveria se manifestar da mesma maneira que o fez no fim do ano
passado, quando o senador Renan Calheiros (PMDB-AL) chamou de “juizeco” um magistrado de primeira instância que autorizou
o cumprimento de um mandado de busca e apreensão no Senado. Naquele
caso, disse a ministra: Todas as vezes que um juiz é agredido, eu e cada
um de nós juízes é agredido”. Até agora, porém, ela se manteve calada.
Na
mesma linha de Veloso, seguiu o presidente da Associação Nacional dos
Procuradores da República, José Robalinho Cavalcanti. “Não questiono o
mérito de suas decisões. Mas ele extrapola em muito os limites de
atuação de um juiz quando usa palavras rudes que seriam mais adequadas a
um jogo partidário”, declarou o procurador. Na semana que passou, a
ANPR emitiu uma carta aberta aos ministros do STF
cobrando que Mendes tenha uma postura imparcial. Nos próximos dias, a
presidente da Corte, Carmen Lúcia, terá de decidir se leva ao plenário o
pedido feito pelo Ministério Público Federal contra seu colega.
Relações políticas
A
relação delicada de Gilmar com os familiares dos investigados neste
caso do Rio de Janeiro é só uma parte do incômodo que o ministro do
Supremo tem gerado. Seu trânsito político incomum também desperta
reações. Os casos mais notáveis, atualmente, são a proximidade que ele
tem com o presidente Michel Temer e com o senador Aécio Neves (PSDB),
ambos investigados no STF no âmbito da operação Lava Jato e em outros
casos de corrupção. É comum Gilmar se reunir em encontros extraoficiais
com Temer, a quem absolveu recentemente no Tribunal Superior Eleitoral
do crime de abuso de poder político e econômico nas eleições de 2014.
Chama a atenção, ainda, como ambos têm discursos alinhados para assuntos
polêmicos, como o parlamentarismo.
Com Aécio, o magistrado foi
flagrado em um grampo telefônico feito contra o senador, no qual o
parlamentar pede para ajudá-lo a convencer um colega a votar
favoravelmente a uma matéria de seu interesse. Apesar de se relacionar
com o senador mineiro, até o momento ele não se declarou impedido de
julgar nenhum caso que o envolva. Atualmente, há nove inquéritos contra
Aécio no STF, e quatro deles são relatados por Gilmar. Desses, os que
chamam mais atenção são um em que o senador é investigado por ter
recebido recursos ilícitos da Odebrecht para sua campanha eleitoral de
2014; e outro que analisa irregularidades durante a campanha de Antonio
Anastasia ao governo de Minas Gerais. Neste processo, o senador seria o
intermediador de um pagamento ilícito de 5,4 milhões de reais.
Sempre
que questionado sobre seus encontros, com os políticos, o ministro diz
que discute temas variados, desde projetos sobre abuso de autoridade até
a reforma política. Matérias que transitam atualmente no Congresso
Nacional.
Em Brasília, por conta dessa proximidade com autoridades
criou-se uma espécie de bolsa de apostas na qual os políticos discutem
se Gilmar irá se aposentar e concorrer, em 2018, a um cargo de senador por seu Estado natal, o Mato Grosso.
Pressão contra o Senado
O
movimento desta semana contrário começa a ganhar força na internet. Em
pouco mais de uma semana, 808.000 pessoas assinaram uma petição virtual em que é requisitado o impeachment de Gilmar.
Em uma das mensagens dos apoiadores há uma provocação ao ministro:
“Será que ele vai processar todo mundo?”. A postagem se remete à atriz
Mônica Iozzi, da Rede Globo, que foi condenada a pagar 30.000 reais como
danos morais ao magistrado por criticar uma decisão dele por meio de
uma publicação em sua consta do Instagram.
Caso esse pedido de
impeachment prospere, ele será enviado ao Senado Federal, onde desde
junho já tramita um processo de destituição do ministro. Neste caso, um
grupo de juristas questionou a proximidade entre Mendes e o senador
Aécio e disse que ele pratica atividades político-partidárias. O caso
ainda não analisado pelo Senado. Outros dois pedidos de impeachment
contra o ministro já foram arquivados desde 2008.
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