Menos de 24 horas antes de se tornar uma das 11 vítimas da tragédia da creche Gente Inocente,
a professora Heley de Abreu, de 43 anos, subiu a escadaria da Catedral
do Sagrado Coração de Jesus, no centro de Janaúba, a 560 quilômetros ao
norte de Belo Horizonte, para a reunião de crisma do filho mais velho.
Na paróquia, conversou com Hélia Pereira, de 48, com quem trabalhou na
década de 1990. “Comadre, comadre, cê tá rouca demais, não vai dar aula
amanhã, não”, recomendou a amiga, que hoje é diretora do Serviço Escolar
do município. “Só porque cê agora é chefe, tá querendo me ordenar”,
respondeu, brincalhona. Na despedida, falou a sério: “Não falto,
comadre. Preciso cuidar dos meus filhinhos”, sem saber que estava
prestes a seguir à risca o significado de “professor” - aquele que
professa.
Moradora de Nova Porteirinha, vizinha de Janaúba, Heley
cruzou bem cedo a ponte do Rio Gorutuba, na divisa entre as cidades,
para estar às 7 horas na Gente Inocente, então uma escolinha com apenas
81 alunos matriculados, a maioria filho de lavrador, encravada no
anonimato do sertão mineiro. Isso até o incêndio criminoso na
quinta-feira, dia 5, que destruiu as três salas de aula, queimou livros
escolares e matou 9 crianças (a mais velha, de 5 anos), além da própria
professora e do agressor.
Às 9h30, o vigia noturno Damião Soares dos Santos, de
50 anos, bateu no portão de ferro da creche para entregar um atestado
médico à diretora. No momento, os alunos tomavam banho de mangueira no
pátio ou assistiam a um filme - era semana de comemoração do dia das
crianças. Na véspera, todos tinham ido passear em um parque. Funcionário
de lá há 8 anos, Damião entrou sem dificuldade, cumprimentou um e outro
e caminhou até o salão principal da unidade.
“Vou dar picolé para
vocês”, teria dito o vigia, que nas horas vagas vendia sorvete a R$ 1,
fabricado por ele mesmo. Então, sacou um recipiente plástico e começou a
espalhar um líquido, provavelmente etanol. “Que é que é isso, Seu
Damião?!”, reagiu uma professora, do lado de fora. Um palito de fósforo
depois, tudo era fumaça, corre-corre, gritaria, choradeira. Lá de
Londres, a BBC estampou: “Crianças incendiadas em Minas
Gerais”. No mapa, o jornal destacou dois quadradinhos, um para o Rio de
Janeiro e outro para Janaúba. Pela distância entre os pontos, deve ter
ficado claro que o lugar não fazia parte do Brasil para inglês ver.
“Quem
ia imaginar um trem desse, moço?”, foi o comentário mais frequente
entre moradores, amigos e parentes das vítimas, que se ocuparam de pular
de velório em velório, realizados dentro das casas, e de seguir carros
funerários em cortejos pela cidade. Todos eram unânimes em exaltar
Heley, responsável por evitar que a tragédia fosse ainda maior. Com mais
de 20 anos dedicados à Educação, a professora entrou no hall de heróis
brasileiros - mas por ter lutado contra o agressor e, em chamas, conseguir salvar boa parte dos alunos.
Ainda
na quinta, o governador de Minas, Fernando Pimentel (PT), visitou as
famílias e destacou uma força-tarefa para o socorro dos sobreviventes -
os quadros mais graves precisaram ser transferidos de Janaúba, onde
falta até soro, agulha e esparadrapo nos hospitais. O presidente Michel
Temer (PMDB) lamentou pelo Twitter: “Eu que sou pai imagino que esta
deve ser uma perda muitíssimo dolorosa”. Na missa de sétimo dia da
professora, o bispo Dom Ricardo Brusati, da Diocese de Janaúba, leu uma
carta enviada pelo papa Francisco. “O Santo Padre pede ao céu o conforto
e restabelecimento para os feridos, coragem e a consolação da esperança
cristã para todos atingidos por esta tragédia absurda.”
Internautas
correram para criar a página de Heley de Abreu no Wikipédia, mas
erraram a grafia do nome dela - escrevendo “Helley”, com dois Ls; em vez
de um L só. “Ganhou notoriedade ao dar sua própria vida em um ato de
coragem para salvar crianças”, diz o verbete da professora, que atingiu o
total de 13 linhas, após ser atualizado pela última vez. Para
comparação, a página de Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, líder
do PCC e descrito no mesmo site como “um criminoso brasileiro”, tem 34.
Família.
Na manhã de segunda, 9, um veículo a serviço da prefeitura de Janaúba
estacionou à sombra de uma figueira asiática, em frente à casa de Valda
Terezinha Abreu Silva, de 66 anos, mãe da professora. Reunidos lá, os
parentes receberam os objetos de Heley que foram resgatados do incêndio:
a chave do carro, canetas coloridas, um estojo, uma bolsa esfarelada e
metade de uma fotografia do marido Luiz Carlos Batista, de 49, com o
filho Breno, de 15.
Em 1993, Luiz Carlos fazia curso técnico de
prótese dentária em Montes Claros, cidade polo da região norte de Minas,
quando se apaixonou pela atendente da loja de material de construção do
irmão. Na época, Heley era uma jovem de 19 anos. “Ela tinha um sorriso
muito marcante”, disse o marido. O relacionamento começou depois de um
convite para beber cerveja e terminou em um casamento com quatro filhos -
Pablo, já falecido; além de Breno, Lívia, de 12, e o bebê Olavo, de
apenas 1 ano e 2 meses. “Carlinhos foi o primeiro e o único namorado
dela”, relembrou dona Valda.
Nascida em 12 de agosto de 1974, em
Montes Claros, Heley mudou-se para Janaúba aos 10 anos, após o pai, o
comerciante José Rodrigues da Silva, arrumar emprego em uma loja de
móveis na cidade. Alfabetizada desde os 5, a professora estudou em
escolas públicas e primeiro cursou Contabilidade para ajudar nos
negócios da família. O sonho dela, no entanto, era ensinar as crianças
da região, moradoras da roça, a ler e escrever.
Professora
aposentada, a tia Doralice de Abreu, de 65 anos, diz ter sido a maior
inspiração de Heley. “Quando assumimos uma sala de aula, damos a vida
pelos alunos, mas no sentido figurado. Ela deu, de fato”, afirmou. “O
brinquedo de Heley, na infância, era ser professora. Ela calçava meus
tamancos, vestia minha saia e saía catando lápis e caderno - as
amiguinhas eram os alunos”, conta dona Valda sobre Heley, a mais velha
dos três filhos. “Ela gostava tanto que até comprei um quadro de giz
para a casa.”
Conhecido como “Carlinhos Dentista”, o marido
Luiz Carlos é dono de um pequeno laboratório em Nova Porteirinha,
responsável por diminuir o número de bocas banguelas na região. Uma das
próteses que fabricou, no ano passado, foi para Damião, o vigia que
incendiou a creche. Na hora da tragédia, Carlinhos estava fazendo uma
prova em Mata Verde, a 276 quilômetros de Janaúba, onde cursa o 4.º
período de Odontologia. “Era meu sonho, Heley fez de tudo para eu não
desistir e pegamos empréstimo para financiar os estudos”, disse. Da
prefeitura, Heley recebia R$ 1,7 mil. Por causa da faculdade de
Carlinhos, a família contraiu uma dívida de mais de R$ 13 mil.
Em
2002, os dois viveram a primeira crise no casamento. Durante o baile de
carnaval, o primeiro filho do casal, Pablo, de 4 anos, morreu afogado na
piscina de um clube, no Balneário Bico da Pedra. À época, Heley estava
grávida de 7 meses. “Eu entrei em depressão. Não sei de onde ela
encontrava força, mas era Heley quem me confortava”, afirmou Carlinhos,
que hoje é colega de faculdade de uma amiga do filho. Anos depois, a
professora também encontrou o pai, de 52, que morreu dormindo.
Aprovada
em concurso municipal há 8 anos, Heley trabalhou a maior parte da vida
com contratos provisórios ou professora substituta. Só foi nomeada para o
cargo em 2016. “O sonho dela era a efetivação, uma luta que estava se
arrastando há muito tempo. Em cidade do interior, cê sabe, faz um
concurso mas, na hora de contratar, o prefeito coloca o pessoal dele.
Aí, vem outro prefeito e troca todo mundo. Nunca chega a vez de quem
passou na prova”, disse Carlinhos. “Finalmente acontece e o primeiro
lugar que ela vai trabalhar é na Gente Inocente.”
“Quando ela foi
efetivada, pediu prioridade para ensinar ao maternal. Ela chamava as
crianças de ‘meus filhinhos’, nunca de ‘alunos’”, contou Carlinhos.
“Todo dia, ela chegava em casa e ficava me mostrando as fotos dos
meninos da creche no celular.” Segundo o marido, Heley nunca recebeu uma
advertência ou ficou sem emprego. “Ela não só empurrou o cara, como,
mesmo pegando fogo, entrou e saiu da escola três vezes, levando as
crianças para fora. Só parou mesmo porque a força acabou. Ela poderia
ter se salvado, mas agiu por impulso materno.”
Devota de Nossa
Senhora de Aparecida, a família acendeu sete velas, uma por noite, em
orações a Heley. Com cerca de 20 pessoas, entre parentes, amigos e
vizinhos, os encontros ocorreram na casa de dona Valda, onde uma foto da
professora decorava o terraço. “Da tragédia, nasce o amor. Veja quanto
amor estava escondido mas saiu para ajudar o irmão”, disse um dos
presentes, pouco antes de o grupo iniciar uma música do padre Fábio de
Melo. “Incendeia minha alma! Incendeia minha alma! Incendeia minha alma,
senhor!”, cantaram, de mãos dadas. Aprendendo a andar, o bebê Olavo
repetia ao ver a imagem de Heley: “Mã-mã... Mã-mã...”
Início.
Separado do centro por 18 quilômetros de estrada de barro e plantações
de banana, o vilarejo de Vila Nova das Poções, na zona rural de Janaúba,
abriga a escola onde Heley começou a dar aula, em 1995, mesmo sem ter
formação (ela faria Pedagogia depois). Localizada em uma área
remanescente quilombola, o colégio fica em um terreno doado por um
latifundiário da região, atualmente homenageado no nome da unidade:
Escola Estadual Julião Mendes Ferreira.
Até 2008, o colégio
pertencia ao município e se chamava Jacinto Mendes. Na ruazinha de
terra, asfaltada recentemente, só havia a escola, uma igreja e um bar.
Por causa do acesso ruim, ia para lá às segundas e só voltava no sábado.
“A gente ficava a semana toda, morando em uma casinha dos fundos da
escola. Eram 13 meninas, todas muito jovens, inclusive a Heley”, contou a
amiga Hélia Pereira, que era a diretora da unidade. A casa das
professoras tinha apenas um banheiro e cinco camas de cimento - para
dormir, as docentes espalhavam colchões pelo chão de cimento queimado.
Às vezes, ficavam quase 20 dias sem voltar para casa.
Nem sempre
os ônibus da cidade chegavam ao vilarejo, por isso não era raro Heley
pegar carona na beira da estrada para dar aula, carregando sacolas com
alimentos (gostava de lasanha e macarrão) e trouxas de roupa. “A gente
vinha em carro de leite, em pau-de-arara”, disse Hélia. “Preparávamos
tudo na cozinha da escola, mas como Heley não gostava de cozinhar, ela
ficava sempre no grupo da faxina.” A água, salobra, era imprópria para
consumo. “Quando esqueciam de levar os galões, a gente fazia
racionamento: era um alvoroço.”
Com o quadro reduzido, as
professoras trabalhavam em dois turnos. No primeiro, ensinavam uma turma
até a antiga 4.ª série (atual 5.º ano). No outro, uma disciplina do
fundamental 2. Lá, Heley ensinava Matemática. “Só assim compensava o
salário”, disse Hélia. “Ela brigava comigo o tempo inteiro porque queria
trabalhar com as crianças menores, eu falava que não dava certo”,
afirmou. “Queria porque queria alfabetizar, era muito empolgada. Gostava
de ver os meninos escrevendo a primeira letra, a primeira frase, o
próprio nome. Eram crianças muito carentes, traziam uma dificuldade de
entendimento muito grande.”
A maioria das professoras casou com
homens de Vila Nova das Poções, já Heley namorava com Carlinhos. Na
primeira gravidez, deu aula durante os 9 meses de gestação. “Era uma
pessoa muito saudável, vivia chupando limão. Impunha muito respeito com o
vozeirão dela”, lembrou Hélia. Atual diretora da unidade, a professora
Gislene Oliveira, de 35 anos, dividia a disciplina de Matemática com
Heley. “Ela era muito criativa e sistemática”, disse. “Muitos alunos
vieram me contar que o primeiro teatro que participaram na vida foi com
ela.”
Criada na roça, a ex-aluna Cleide dos Reis, de 35 anos, foi
alfabetizada aos 10 e lembra das classes de Heley. “Tenho muito orgulho
de ter sido aluna dela”, disse. “Eu ia para a recuperação e lembro de
ficar jogando dominó com ela”, contou. “Naquele tempo, professor batia
na gente - em mim, mesmo, já jogaram apagador, giz… Mas a Heley era
diferente, não fazia nada disso”.
Proprietário de um supermercado,
o empresário Laércio Souza, de 34 anos, agradece à professora. “Heley
era boa demais, muito dedicada, tinha o respeito de todos os alunos”,
afirmou. “Ela dizia para a gente estudar, para ser alguém na vida”,
disse o morador de Janaúba, que nasceu em uma casa de barro, onde também
moravam os pais e 6 irmãos. “Graças a Deus, eu tenho uma vida mais
confortável hoje. Não teria conseguido, se não fosse a escola.”
De
lá para cá, a escola passou por reforma para construção de um anexo com
mais salas de aula, mas não tem nem sequer extintores. Consumida pelas
chamas, a creche Gente Inocente também não tinha qualquer sistema
anti-fogo ou autorização dos Bombeiros, apesar de ter sido inaugurada no
ano 2000.
“A necessidade de combate a incêndio seria de um
projeto técnico simplificado, com sinalização de emergência, extintores,
saída de emergência e treinamento de brigada para as professores”,
comentou o coronel Primo Lara de Almeida, do Corpo de Bombeiros de Minas
Gerais, que passou a coordenar uma inspeção em nos imóveis públicos,
após a tragédia. “Para o prefeito, estava tudo ok, porque já vinha assim
de outros governos”, disse. “Infelizmente, aqui no Brasil, acontece um
fato e aí é que vai correr atrás. Depois que acontece é que o pessoal
atenta, né?”
Homenagem. Também foi depois do
acontecido que atentaram para Heley. Oficialmente, o primeiro
reconhecimento veio do marido - mas para a liberação do cadáver no
hospital. Com 98% da superfície carbonizada, Carlinhos só conseguiu
identificar o corpo por causa do queixo protuberante e de uma prótese
dentária, dois pré-molares, fabricada por ele mesmo e resistiu ao fogo.
Sob
olhar de admiração de centenas de pessoas, o velório aconteceu com o
caixão fechado, na tarde de sexta, 6. O corpo de Heley foi transportado
no carro dos Bombeiros até o cemitério. Ela foi sepultada no jazigo da
família, ao lado do filho Pablo. Mais tarde, autoridades municipais e
empresários da região estiveram reunidos para discutir a reforma da
creche incendiada. “E se ela se chamasse ‘Gente Inocente - Heley de
Abreu’?”, sugeriu um dos presentes. Os demais participantes até
aprovaram a ideia, mas empurraram a definição para outro dia.
Por
meio da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, o
presidente Michel Temer anunciou no domingo, 8, que Heley vai ser
condecorada com a Ordem Nacional do Mérito. A honraria é concedida a
pessoas que deram exemplo de dedicação e serviço ao País.
“Este é o
caso da Professora Helley Batista, que sacrificou sua própria vida para
salvar a vida de seus alunos, em um gesto de coragem e de heroísmo que
emocionou a todos”, dizia a primeira nota divulgada pelo governo Temer.
Lá de Janaúba, Carlinhos até comentou a homenagem: “Escreveram o nome
dela errado, é com um L só.”
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