BBC Brasil
À primeira vista, os senadores brasileiros obtiveram uma vitória na
última quarta-feira, quando os ministros do Supremo Tribunal Federal
decidiram que o Senado precisa autorizar o afastamento de um membro da
casa.
Não necessariamente, diz Thomaz Pereira, professor de Direito da FGV-Rio e doutorando da universidade Yale (EUA).
Para
o especialista legal, a decisão pode, inclusive, deixar o STF mais à
vontade para determinar o afastamento de senadores investigados na Lava
Jato, e cobrar um preço político elevado dos senadores, que terão de
"salvar" ou "condenar" os próprios colegas.
O STF atendeu
parcialmente a um pedido formulado em maio de 2016 pelos partidos PP,
PSC e Solidariedade. O que as legendas queriam, à época, era que o STF
permitisse à Câmara dar a última palavra sobre o afastamento do
ex-deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ).
O peemedebista estava afastado das funções desde o dia 5 de maio, por ordem do STF. Cunha é, inclusive, citado no pedido.
Na
prática, a decisão dos ministros do STF permitirá ao Senado decidir se
mantém ou não o afastamento de Aécio Neves (PSDB-MG) do mandato de
senador. Aécio está proibido de frequentar o Senado, de sair de casa à
noite e até de falar com a própria irmã, a jornalista Andrea Neves, por
ordem do STF.
Se o Supremo tivesse julgado o pedido à época em
que foi feito, a própria Câmara teria que decidir sobre o afastamento de
Eduardo Cunha, lembra Pereira. É possível que o destino do político
fluminense, alvo de vários processos na Lava Jato, tivesse sido
diferente.
Pereira, que também integra o Centro de Justiça e
Sociedade da FGV-Rio e o grupo de análise político-jurídica Supra, no
qual se dedica a examinar decisões do STF, diz ainda que a decisão de
quarta-feira pode deixar o Judiciário mais confiante para determinar o
afastamento de políticos que estejam usando o mandato para barrar as
investigações, já que o caso acabará no Congresso.
"O STF pode agora, talvez, decidir com mais tranquilidade. 'Olha, se
vocês não acham que é o caso (de afastar), votem aí'. Só o tempo vai
dizer se o Supremo vai ser mais restritivo ou mais expansivo no
exercício desse poder", diz.
Ele menciona ainda a possibilidade
do desgaste político para senadores e deputados por conta do afastamento
ou "salvação" dos colegas investigados.
"Talvez
os senadores não queiram ser colocados constantemente nessa situação de
ter que votar sobre isso. O primeiro caso a gente vai ver logo, que é o
do Aécio Neves. Mas, no decorrer da Lava Jato, é possível que a gente
veja essa história acontecendo mais vezes. E não está claro se os
senadores querem se ver em uma situação de ter que ficar votando sobre
isso, principalmente em um ano eleitoral, como será 2018", diz Pereira.
BBC Brasil - A decisão do STF ontem reestabelece o equilíbrio entre os poderes ou cria um super-legislativo?
Thomaz Pereira - Não
dá para dizer que só essa decisão de ontem cria um "super-legislativo".
Acho que o que as pessoas talvez não entendam é que a Constituição já
prevê, e isso é indiscutível, que no caso de prisão de congressistas, a
Casa (Câmara ou Senado) ao qual ele pertence precisa votar em até 24
horas para decidir se autoriza ou não a prisão.
O que eu diria é
que, dado que o Senado já tem que votar no caso de prisão, ele ter que
votar também no caso de afastamento não o torna um "super-Senado". É uma
interpretação ampliativa dessa exigência? É. Mas é uma interpretação
razoável.
O que aconteceu é que, dado o contexto, muita gente
ficou com a impressão de que a decisão do Supremo também foi motivada
pela conjuntura, pela a reação do Senado (os senadores ameaçaram
derrubar a decisão do STF em plenário). Então, tem menos a ver com a
razoabilidade da tese e mais com a sinceridade da tese. Essa seria a
decisão que o STF teria escolhido se não estivesse numa situação de
confronto?
BBC Brasil - Os parlamentares, com essa decisão, ficam mais protegidos da lei que os cidadãos comuns?
Thomaz Pereira - Os
parlamentares já são mais protegidos. Eles efetivamente têm algumas
imunidades. Têm, por exemplo, uma imunidade sobre o que eles dizem maior
que a de um cidadão comum. Assim como um presidente da República, como
um juiz ou ministro do STF (que têm outras imunidades).
O que é interessante no contexto é que talvez isso não é algo necessariamente bom para o Senado.
O
STF pode agora, talvez, decidir com mais tranquilidade. 'Olha, se vocês
não acham que é o caso (de afastar), votem aí'. Só o tempo vai dizer se
o Supremo vai ser mais restritivo ou mais expansivo no exercício desse
poder. E só o tempo vai dizer também como o próprio Senado vai se
comportar em relação a esse poder.
Para quem está na situação de
sofrer a ordem, a proteção (dada pela decisão de ontem do STF) é boa.
Mas para os colegas não é necessariamente bom ficar na posição de ter
que fazer esse tipo de controle (dada a pressão da opinião pública).
BBC Brasil - Pode-se dizer que para os congressistas a
construção de alianças políticas agora é mais importante que a defesa
jurídica propriamente dita?
Thomaz Pereira - A
Lava Jato tem um número muito grande de congressistas investigados.
Então, essa aliança de pessoas que estão 'no mesmo barco' é natural e a
gente tem visto isto ocorrendo.
Mas tem certas coisas sobre as
quais não há discussão. Não há nenhuma dúvida que o STF pode receber
denúncias (tornando os políticos réus). Pode eventualmente condenar,
caso haja provas, esses políticos que estão denunciados ou sendo
investigados. E caso isso aconteça, sobre isso não tem votação.
Claro
que existe proteção, que pode envolver alterações de legislação,
envolve o exercício desse poder de autorizar ou não as medidas
cautelares. Mas há certas situações que não tem aliança (política) que
resolva.
BBC Brasil - O senhor acha que o STF caminha no sentido de minar a própria autoridade com essa decisão de ontem?
Thomaz Pereira - Autoridade
tem a ver com percepção. Tem a ver com como a sociedade ou as pessoas
sentem que aquele poder está sendo exercido. Autoridade não é meramente
poder (de determinar alguma medida). Envolve você aceitar o exercício
daquele poder, você considerar que aquele poder está sendo exercido de
maneira legítima.
Há sim certas coisas que o Supremo fez nos últimos tempos que prejudicam isso.
Quanto
mais parece que as decisões no Supremo dependem aleatoriamente da sua
sorte, de com qual relator caiu, em qual turma caiu, mais difícil é
levar a sério, e mais ameaçada fica a autoridade do Supremo.
O
respeito à decisão decorre de uma certa crença de que aquela decisão
está sendo tomada independentemente de quem é o ministro específico ou o
réu do caso. Essa fragmentação do STF é algo que atrapalha, assim como
isto se manifesta nas críticas de um ministro às decisões tomadas por
outros.
BBC Brasil - O que explica que o STF tenha dado
decisões monocráticas contra parlamentares (com o afastamento de Renan
Calheiros da presidência do Senado pelo ministro Marco Aurélio, no fim
de 2016) e agora diga que não poderia ter feito isto?
Thomaz Pereira - O exemplo de Renan Calheiros foi o primeiro round do que a gente acaba de ver agora com o Aécio Neves.
Nesses casos, não existe uma incoerência entre a cautelar que afastou
o Renan Calheiros da presidência do Senado e a decisão de ontem.
Tinha
(no caso de Calheiros) uma questão específica de ele estar na linha
sucessória da presidência (da República). E no final das contas aquele
caso não foi testado, porque a decisão foi tomada pouco tempo antes do
Renan Calheiros sair da presidência do Senado, pelo fim do mandato.
Em
relação ao (ex-deputado Eduardo) Cunha, a decisão foi tomada
individualmente pelo Teori Zavascki, mas foi levada imediatamente ao
plenário (do STF). No mesmo dia. Foi confirmada pelo plenário por
unanimidade. De forma coesa. Todos eles concordaram que aquele caso
específico era de afastamento do mandato e da presidência da Câmara. Mas
de novo a gente não teve esse teste. Havia um consenso.
Depois
do julgamento de quarta-feiora, se fosse exatamente o mesmo caso de
Eduardo Cunha, pelo que foi decidido, realmente seria o caso de ser
votado pela câmara o afastamento.
Na época, não falaram nada
sobre isto (se a Câmara teria de referendar ou não). Poderiam argumentar
que não foram provocados a falar sobre essa questão.
Thomaz Pereira - O
final do julgamento foi um pouco confuso. Ficou meio cinzento onde
estaria esta linha. Mas o ministro (Dias) Toffoli fez questão de
exemplificar: busca e apreensão, interceptação telefônica, todas estas
coisas, não precisam de autorização. O critério é algo que atrapalhe o
exercício do mandato.
Do outro lado tem um caso extremo, que é a
suspensão do exercício do mandato. Que claramente precisaria de
autorização do Congresso.
BBC Brasil - O STF decidiu
motivado pelo contexto - de uma possível rebelião do Congresso, ou de
ter a decisão questionada. E não é a primeira vez que isso ocorre. Está
se tornando um padrão?
Thomaz Pereira - Há
reações que o Senado ou o Congresso podem ter em relação ao tribunal
quando eles discordam de alguma decisão, e que são reações legítimas. Se
o Tribunal, por exemplo, interpreta a Constituição de uma maneira com a
qual o Congresso discorda, é possível que o Congresso emende a
Constituição. No final das contas, quem tem o poder de fazer e emendar
as leis são os próprios legisladores.
Então isto, em situações
normais, faz parte de um diálogo saudável para a democracia. O nosso
problema é o contexto. A gente sabe que o nosso contexto não é de
relações saudáveis e de discordâncias razoáveis e leais entre poderes. A
gente está numa situação de crise, uma situação na qual a Lava Jato é o
fato político mais relevante do país.
BBC Brasil - A
decisão de ontem põe em risco a Lava Jato? Ou há exagero da parte dos
procuradores nas críticas à decisão do STF?
Thomaz Pereira - No
contexto que a gente vive, é natural que as pessoas vejam com suspeita
este tipo de movimento. Achem que este tipo de movimento possa minimizar
a capacidade do Judiciário de lidar com esta crise. Mas como eu já
disse, há certos poderes que o Judiciário tem que são inquestionáveis.
Receber
a denúncia é um poder que o STF tem a qualquer momento. Condenar esses
congressistas é um poder que o STF tem a qualquer momento.
A
crítica e a pressão devem ser para que as denúncias sejam oferecidas,
para que sejam apreciadas, e que os casos sejam efetivamente julgados,
antes que os crimes prescrevam. Tanto da parte do Ministério Público
quanto do Judiciário.
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